A QUEDA DO MITO: UMA LUZ DIANTE DA LOUCURA DAS MASSAS BRASILEIRAS
- Wellington Silva
- 3 de nov. de 2022
- 9 min de leitura
“Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exagerados. Assim, a massa não conhece nem a dúvida nem a incerteza”.
(Sigmund Freud, “Psicologia das massas e análise do eu” [1921])

Domingo, 30 de outubro de 2022, será lembrado como uma data histórica para a sobrevida da democracia no Brasil. Foi por pouco!... Por muito pouco e de forma equivocadamente voluntariosa, que o Brasil não se atirou, novamente e em delírio coletivo, na aventura do inferno fascista desde a sua redemocratização, em 1985.
De um universo de mais de 156 milhões de eleitores aptos a votarem nas eleições de 2022, um pouco mais de sessenta milhões deles (50,90% dos votos válidos) deram vitória ao candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, que conquistou seu terceiro mandato de presidente por eleições direitas, feito que nem Getúlio Vargas conseguiu ao longo dos anos 1930 a 1950.
Com uma diferença de pouco mais de dois milhões de votos, na disputa mais acirrada para o cargo de presidente de todos os tempos, do outro lado do páreo, estava o pior e mais desconcertante presidente em exercício de toda a história republicana brasileira: o obscuro Jair Messias Bolsonaro. Certamente, a história reservará a esta caricatura fascista dos rincões fluminenses, o seu lugar no panteão dos grandes monstros que aterrorizaram a república brasileira do século XXI.
Bolsonaro, em pleno exercício de seu mandato, arquitetou a mais bilionária e corrupta campanha de reeleição com dinheiro público para compra de votos e fraudes eleitorais da história. O escândalo do chamado "orçamento secreto" é uma "caixa-preta" que deverá ser aberta para saber o tamanho do rombo no erário provocado pelas artimanhas de Bolsonaro em busca da sua reeleição. Paradoxalmente, Lula se consolidou como a maior referência democrática na política brasileira das últimas décadas.
Todo o arbitrário processo de difamação e prisão de Lula diante das inúmeras tentativas de desconstrução de sua biografia, operacionalizada pela Grande Mídia à serviço de amplos setores da burguesia brasileira e de classes médias subalternas e mimetizadoras de interesses burgueses, não conseguiram destruir a imagem do seu passado, de tal de modo a conquistar um retorno triunfal à mais um mandato popular. O seu partido, o PT, apesar de muitos equívocos políticos quando esteve no poder e sob incansável campanha de difamação midiática, sobreviveu aos ataques, em muitos casos, desproporcionais e injustos, e sagrou-se vitorioso diante deste processo de resistência política.
É possível afirmar que Lula é o maior fenômeno político dos últimos tempos no Brasil e, no momento, é o único a estar credenciado para alinhavar uma política amenizadora, porém conflitante, de “conciliação de classes”. Por sinal, tal movimento foi uma tentativa de ser construída uma aliança entre as classes sociais com maior durabilidade, mas ficou desgastado durante os mandatos presidenciais de Lula, de 2003 à 2010. Com a gestão de Dilma, o que ainda restava da conciliação de classes erodiu de vez e cristalizou-se no golpe de 2016. A questão, em voga, é se diante da real conjuntura atual, tão diversa dos arranjos políticos e sociais de 2003, ano do seu primeiro mandato, ainda será favorável para Lula fazer este tipo de acordo de união nacional de "conciliar o inconciliável".
Retomando ao personagem Bolsonaro. Desde quando saiu do seu gueto eleitoral, em completo desconhecimento nacional, nos territórios ocupados por milicianos no Rio de Janeiro, sua base eleitoral, Bolsonaro passou por quase trinta anos a circular pelo "Baixo Clero" do Congresso Nacional, como caricatural e insignificante deputado federal. Em 2018, com arbitrária prisão de Lula pelo juiz Sérgio Moro, o falso paladino da máquina golpista chamada "Lava Jato", a maior farsa jurídica da história do Brasil, o inepto Bolsonaro ganha fôlego eleitoral e chega ao Palácio do Planalto, diante da mais grave crise da Nova República, a partir dos escombros do golpe de Estado de 2016. Todos estes fatos se forjaram em episódios dos mais escatológicos do longo processo histórico de golpismos reacionários praticados pela burguesia brasileira.
Diante de uma eleição intempestiva do uso de uma desonesta e campanha eleitoral com farta munição de "fake news", Bolsonaro foi surfando no antipetismo reinante desde os protestos golpistas de 2013, onde se costurou o maior conluio civil-parlamentar-jurídico-midiático da derrubada de um governante em exercício do poder desde a deposição do ex-presidente João Goulart em 1964: o golpe de Estado contra a ex-presidenta do mesmo partido de Lula, o PT, Dilma Rousseff.
O golpe de 2016 expôs, mais uma vez, a ferida nunca cicatrizada do conservadorismo reacionário com moldes fascistas na sociedade brasileira. Bolsonaro é uma representação material de tudo o que tem de mais apodrecido no seio desta mesma sociedade brasileira. Um político que estimula, em cada momento que se dirige a palavra, o ódio, a redução cognitiva e o fanatismo alienante das massas em torno de suas insanidades criadas em seu imaginário delirante de pura perversão.
Bolsonaro é uma figura abjeta, grotesca, ignorante, que responde a todos com insultos, grosserias e palavrões. Valores esses que se tornaram elementos "motivadores" para o protagonismo de uma série de aventureiros, em particular das forças policialescas e militares, a se engajarem eleitoralmente na política em busca de holofotes, ascensão social, cobiça e projeção pessoal.
Adiciona-se aos predicados pouco louváveis, Bolsonaro é uma figura de uma sexualidade vacilante e atormentada onde procura expelir seu ódio a qualquer coisa que não for espelho. Com sua teatralidade patética de vocação de um falso e bizarro cristianismo e ventilado com um discurso chulo de porre de boteco. Bolsonaro sempre usou e descartou as religiões conforme sua conveniência e, fez este processo durante todo o seu mandato. Uma grande virtude da perversão de Bolsonaro foi conseguir angariar milhões de ovelhas para seu rebanho de apoiadores vestidos com a camisa da Seleção Brasileira e enrolados na bandeira brasileira.
Diante deste fenômeno singular na história republicana, Bolsonaro conseguiu capturar um dos mais apodrecidos sintomas de deterioração política e social das últimas décadas na sociedade brasileira: a ascensão das máfias capitalistas que exploram a cultura popular religiosa travestida de fanatismo evangélico e, em particular, as seitas neopentecostais. O parasitismo da religião operada por verdadeiras máquinas eleitorais mafiosas na política brasileira é um capítulo especial e que demonstra o apodrecimento da própria democracia brasileira, com baixa amplitude da cidadania e, agora, se estabelecendo de cepas de ideologia fascista.
Não há dúvida de que Bolsonaro foi um verdadeiro genocida e contribuiu para ampliar, durante a pandemia de COVID-19, desde fevereiro de 2020, o maior número possível de mortes, que circunda por volta dos 700 mil seres humanos os quais não teve sequer uma única visita de Bolsonaro em seus velórios. Ademais, cerca de 35 milhões de pessoas contraíram a doença e um número incalculável delas convive com sequelas até hoje.
Bolsonaro fez de tudo para negligenciar os cuidados sanitários vitais, impediu a compra de vacinas, debochou de doentes e suas vítimas. Nenhum presidente que ocupou o cargo desde a instalação da República por meios democráticos foi tão sórdido, perverso e cruel como Bolsonaro. Ninguém poderá estar alheio à este tão dramático e explícito quadro de pura perversão genocida patrocinada por Bolsonaro.
Como um tresloucado bufão da morte, os principais feitos de Bolsonaro foram alucinar as massas de seus seguidores buscando forjar uma completa loucura narrativa para ocupar a categoria de “inimigos do cidadão de bem”: a velha ficção fantasmagórica e risível ameaça do comunismo, homossexuais, pedófilos, “professores doutrinadores”, indígenas, pobres, negros, mulheres... Até os cuidados pregados por autoridades sanitárias durante a pandemia foram satanizados por Bolsonaro! Lembrar ainda que Bolsonaro insistia, repetidamente, para as pessoas não ficassem em casa e fosse trabalhar em meio a devastação pandêmica! Simplesmente, Bolsonaro, escancaradamente, não se importava se os brasileiros pudessem se contaminar e, com risco de morte. A vida dos brasileiros nunca significou nada para Bolsonaro, exceto a própria e a da sua família. Contrariando os interesses de Bolsonaro, se não fosse a atuação dos governadores com a preocupação de trazer as vacinas para território nacional, os números da tragédia brasileira diante da pandemia poderiam ainda ser mais altos!
Para “lutar” contra estes "inimigos" elaborados nas fantasias da perversão infanto-juvenil de Bolsonaro, impôs sua condição de chefe de Estado e fez de tudo para liberar armas para quem tivesse dinheiro para comprá-las, deixar que o dantesco corporativismo das Forças Armadas ocupasse todos os escalões possíveis do seu governo e liberou o desmatamento desenfreado para seus apoiadores do banditismo extrativista e latifundiários que exploravam o meio ambiente do Centro-Oeste brasileiro e a região amazônica. Mais da metade do território nacional se tornou uma região sem lei, ou seja, uma região digna do “darwinismo social”, onde impera a lei do mais forte, ou seja, os donos do capital. O agronegócio, a faixa economicamente mais ativa de um país que sofre com a desindustrialização, o seu poder é similar a um “Estado paralelo” e aderiu à aventura fascistóide de Bolsonaro.
Desemprego massivo, ampliação da fome pelo país, retrocesso econômico, isolamento político internacional, carestia nos preços de produtos da cesta básica, milhares de pessoas atiradas à própria sorte e o retorno da inflação foram alguns outros feitos de Bolsonaro diante de sua desastrosa passagem pelo Planalto.
A barbárie foi uma marca registrada da gestão de Bolsonaro, que ao mesmo tempo destruía metade do país deixando correr solta a depredação florestal pelos abutres do capital imediato da exploração da natureza. Ao mesmo tempo, permitia a ampliação das milícias no território do Rio de Janeiro, sua base eleitoral.
Diante de todo o processo de ascensão financeira dos negócios escusos da família Bolsonaro, o presidente divertia, todos os dias, sua plateia entusiasmada de apoiadores, fabricando uma projeção para além do papel do presidente: a figura heroica do “mito” do mar de frustrados sociais. Esses indivíduos que apoiam cegamente Bolsonaro são retroalimentados por uma destrutiva frustração atávica. Psicologicamente, esta malta incauta via no seu “mito” uma redenção de seu ódio incontido e seu recalque que não se ousa a ser reelaborado, ou seja, analisado em uma psicoterapia. Assim, o fascismo à brasileira tem alguns matizes, mas certamente, a experiência do “autofracasso” é um dos seus grandes pilares.
Desde modo, Bolsonaro é a personificação da ignorância truculenta e do derrotado vingativo: seus apoiadores, direta ou indiretamente, se projetam nele como uma válvula de escape de suas frustrações pessoais e o gozo de poder destruir o outro com o pleno prazer como se fosse com as próprias mãos. Este medíocre “ar de superioridade” é típico das hordas fascistas que conseguem se projetar diante da subjugação moral do outro. Fatores esses tão bem explorados desde a ascensão de Benito Mussolini na Itália dos anos 1920 e, por consagração, o líder máximo do Partido Nazista, Adolf Hitler, nos anos 1920 até o final da Segunda Guerra Mundial, na Alemanha.
Por mais que a maior parte do país se sinta aliviado em derrotar nas urnas a sede de destruição de Bolsonaro e dos seus séquitos agressivos e perversos, o bolsonarismo é, infelizmente, uma realidade instalada no Brasil. Não cabe aqui, no momento, destacar seus desdobramentos históricos, mas é importante salientar que, pela primeira vez na história brasileira, a extrema direita chegou a um surreal e perigoso nível de apoio popular de quase metade do eleitorado nacional!
A questão que se observa, logo após a consagração do resultado das urnas, foi uma ocupação das estradas federais por caminheiros e militantes desta extrema direita bolsonarista objetivando paralisações do fluxo viário pelo país. Os grupos bolsonaristas não têm mais um comando direto, uma vez que seu “mito” se encontra silenciado desde que foi pronunciado o resultado de sua derrota eleitoral. Tais grupos bolsonaristas não aceitam que perderam e querem dar um golpe tresloucado à la “invasão do Capitólio” nos Estados Unidos, ou seja, a farsa criada pelos seguidores de Donald Trump, inconformados com a derrota do “mito” deles, quando invadiram o Congresso Nacional dos Estados Unidos. O episódio foi em 06 de janeiro de 2021, em Washington, e a teatral ação foi desmontada pelas forças policiais e todo o bando foi preso. Apesar do grupo dos apoiadores de Trump ter sido contido, o fato marcou um ineditismo na democracia estadunidense, um movimento nunca ocorrido antes nos Estados Unidos.
A maior tarefa de Lula, no momento, é a proteção de sua vida e sua posse for garantida em primeiro de janeiro de 2023. Ao longo deste processo, é buscar desativar a “bomba relógio” fascista instalada na sociedade brasileira. Não poderá ter vacilações e nem perdões, sob o perigo de se avolumada outra onda golpista tão devastadora ou mortal como a corrida em 2016. É importante lembrar que Bolsonaro é produto de um golpe de Estado e, justamente por isto, enquanto ele não for totalmente desacreditado, seguirá como uma sombra maldita na cambaleante democracia brasileira.
Mais do que nunca, a luta de classes segue viva e feroz diante de um Brasil que, por alguns punhados de votos, quase entregou, eleitoralmente, todo o seu destino, de novo, nas mãos da maior milícia de sociopatas truculentos a serviço do capital da história nacional contra os trabalhadores e os desassistidos de qualquer cidadania.
Por enquanto, é festejar uma grande e histórica vitória de Lula e de todos aqueles que tenham uma mínima percepção do que é viver numa democracia. Todavia, a guerra contra o fascismo à brasileira, ou seja, o jaguncismo bolsonarista, ainda está em evidência e perdida em suas ações. Contudo, o perigo desta militância enfurecida e atordoada é a violência histérica destes grupos de homens e mulheres frustrados, perversos e ignorantes.
Agora, é seguir em frente, com percepção de conjuntura política e combatendo o fascismo, diante de todas as suas mais ocultas ou explícitas manifestações. O fascismo é uma construção metamórfica da degeneração do capitalismo, porém, as lutas sociais também são elaborações de uma pulsão de vida tão resistente quanto persistente! Que a esperança não volte a ser sequestrada, novamente, diante dos uivos dos chacais do fascismo e da loucura alucinada das massas fascistizadas! Viva a democracia, viva a luta e a coragem para mudar em prol da classe trabalhadora e dos esquecidos desta nação.

Wellington Fontes Menezes – Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
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